domingo, 2 de novembro de 2008

anjo torto

No primeiro dos sete céus, debruçado sobre o parapeito das nuvens, há um anjo. Ele observa a epopéia vivida na terra, com todas suas cenas e dramas.

Ver a vida assim, do alto, dá outra dimensão a tudo. É como se o real virasse ficção, e os personagens encarnassem papéis diversos, de autores diversos. Ali vai um rapaz inventado por Shakespeare, lá uma moça saída de um devaneio de Nelson Rodrigues, acolá uma inspiração do Veríssimo.

Estão tão ocupados com seus próprios papéis que não percebem sequer uns aos outros. Não veêm as interpretações bem feitas, os erros de script, os improvisos. Não reparam como as histórias se enlaçam umas às outras, como o caos do mundo real confunde romance com aventura, fantasia com comédia.

Lá de cima, todos parecem formigas, pequenas, agitadas, em sua rotina diária. E o anjo, que não é lá um desses de espada flamejante e auréola, mas um anjo torto, curioso, observa a tudo atentamente.

Ele goza de dons que os gregos invejariam. É capaz de ouvir pensamentos e ver sonhos adormecidos. Tem nas costas o arco do cupido, e na cinta doses de loucura e razão para distribuir pela própria vontade. Sabe atiçar os desejos humanos. A fome, a sede, a ambição, a cobiça, a lascívia. Seu passatempo predileto é bagunçar os pensamentos. Tornar as certezas incertas e o inusitado possível.

O mundo é um grande laboratório. Cada dia, dedos ágeis desencaixam peças desse gigantesco quebra-cabeças e reconfiguram tudo. Cada dia fios invisíveis se armam, como grandes teias preparadas para aprisionar estes pequenos insetos. 

E os olhos de todos - tão despreparados e cegos a esse outro mundo invisível, cegos ao anjo torto do parapeito, que gargalha feito criança às desgraças - enchem-se de razão para especular os porquês da vida.

Sem perceber que tudo ali é uma questão de reação. Tudo é questão de conquistar a simpatia do anjo. Que a vida depende das nossas atitudes com o mundo, para que ele nos responda, nos presenteie, nos acolha.

E tudo o que precisamos é atenção, compaixão, e gentileza.

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