terça-feira, 28 de março de 2006

Porta de colégio

De algum lugar do passado...

Porta de Colégio
Affonso Romano de Sant'Ana

Passando pela porta de um colégio, me veio uma sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida. Banal, direis. Mas a sensação era tocante. Por isto, parei, como se precisasse ver melhor o que via e previa.
Primeiro há uma diferença de clima entre aquele bando de adolescentes espalhados pela calçada, sentados sobre carros, em torno de carrocinhas de doces e refrigerantes, e aqueles que transitam pela rua. Não é só o uniforme. Não é só a idade. É toda uma atmosfera, como se estivessem ainda dentro de uma redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do mundo. Talvez não estejam. Vários já sofreram a pancada da separação dos pais. Aprenderam que a vida é também um exercício de separação. Um ou outro já transou droga, e com isto deve ter se sentido (equivocadamente) muito adulto. Mas há uma sensação de pureza angelical misturada com palpitação sexual, que se exibe nos gestos sedutores dos adolescentes. Ouvem-se gritos e risos cruzando a rua. Aqui e ali um casal de colegiais, abraçados, completamente dedicados ao beijo. Beijar em público: um dos ritos de quem assume o corpo e a idade. Treino para beijar o namorado na frente dos pais e da vida, como que diz: também tenho desejos, veja como sei deslizar carícias.
Onde estarão esses meninos e meninas dentro de dez ou vinte anos?

Aquele ali, moreno, de cabelos longos corridos, que parece gostar de esportes, vai se interessar pela informática ou economia; aquela de cabelos loiros e crespos vai ser dona de butique; aquela morena de cabelos lisos quer ser médica; a gorduchinha vai acabar casando com uma gerente de multinacional; aqula esguia, meio bailarina, achará um diplomata. Algumas estudarão Letras, se casarão, largarão tudo e passarão parte do dia levando filhos à praia e praça e pegando-os de novo à tardinha no colégio. Sim, aquela quer ser professora de ginástica. Mas nem todos têm certeza sobre o que serão. Na hora do vestibular resolvem. Têm tempo. É isso. Têm tempo. Estão na porta da vida e podem brincar.
Aquela menina morena magrinha, com aparelho nos dentes, ainda vai engordar e ouvir muito elogio às suas pernas. Aquela de rabo-de-cavalo, dentro de dez anos se apaixonará por um homem casado. Não saberá exatamente como tudo começou. De repente, percebeu que o estava esperando no lugar onde passava na praia. E o dia em que foi com ele ao motel pela primeira vez ficará vivo na memória.

É desagradável, mas aquele ali dará um desfalque na empresa em que será gerente. O outro irá fazer doutorado no exterior, se casará com estrangeira, descasará, deixará lá um filho - remorso constante. Às vezes lhe mandará passagens para passar o Natal com a família brasileira.
A turma já perdeu um colega num desastre de carro. É terrível, mas provavelmente um outro ficará pelas rodovias. Aquele que vai tocar rock vários anos até arranjar um emprego em repartição pública. O homossexualismo despontará mais tarde naquele outro, espantosamente, logo nele que é já um don juan. Tão desinibido aquele, acabará líder comunitário e talvez político. Daqui a dez anos os outros dirão: ele sempre teve jeito, não lembra aquela mania de reunião e diretório? Aquelas duas ali se escolherão madrinhas de seus filhos e morarão no mesmo bairro, uma casada com engenheiro da Petrobrás e outra com um físico nuclear. Um dia, uma dira à outra no telefone: tenho uma coisa para lhe contar: arranjei um amante. Aconteceu. Assim, de repente. E o mais curioso é que continuo a gostar do meu marido.
Se fosse haver alguma ditadura no futuro, aquele ali seria guerrilheiro. mas esta hipótese deve ser descartada.
Quem estará naquele avião acidentado? Quem construirá uma linda mansão e um dia convidará a todos da turma para uma grande festa rememorativa? Ah, o primeiro aborto! Aquele ali descobrirá os textos de Clarice Lispector e isto será uma iluminação para toda a vida. Quantos aparecerão na primeira página do jornal? Qual será o tranqüilo comerciante e quem representará o país na ONU?

Estou olhando aquele bando de adolescentes com evidente ternura. Pudesse passava a mão nos seus cabelos e contava-;hes as últimas estórias da carochinha antes que o lobo feroz assaltasse na esquina. Pudesse lhes diria daqui: aproveitem enquanto estão no aquário e na redoma, enquanto estão na porta da vida e do colégio. O destino também passa por aí. E a gente pode às vezes modificá-lo.

quarta-feira, 22 de março de 2006

Malvados

Porque lugar de sonho, definitivamente, é na padaria...

segunda-feira, 13 de março de 2006

Ancestralidade

Ouça no vento
O soluço do arbusto:
É o sopro dos antepassados.
Nossos mortos não partiram.
Estão na densa sombra.
Os mortos não estão sobre a terra.
Estão na árvore que se agita,
Na madeira que geme,
Estão na água que flui,
Na água que dorme,
Estão na cabana, na multidão;
Os mortos não morreram...

Nossos mortos não partiram:
Estão no ventre da mulher
No vagido do bebê
E no tronco que queima.
Os mortos não estão sobre a terra:
Estão no fogo que se apaga,
Nas plantas que choram,
Na rocha que geme,
Estão na floresta,
Estão na casa.
Nossos mortos não morreram.

Birago Diop (poeta africano)

.:*:.

Final de semana diferente e especial, viagem às raizes do Rio Grande do Sul, à terras carregadas de histórias e assombramentos. Engraçado como a história está sempre ao alcance de todos - por mais mal contada que seja, por mais unilateral versão do lado vitorioso - mesmo daqueles que não a vêem ou não a querem ver. Engraçado como deixamos de perceber certas verdade e acontecimentos passados carregados de medo e dor, de suspense e terror, e nos perdemos em outros temas fictícios sem saber que a arte, quase sempre imita a vida (muito mais do que o inverso).

Nunca me interessei muito por história. Sempre achei que era passado, que apesar das lições sobre o mundo e as pessoas, o homem devia fitar mais o futuro, ou talvez o presente.
Hoje tenho certeza que o passado é mais, é encantamento, fascinação.
Que a história vai além de um amontoado de datas para se decorar, de experiências que deram certo ou não.

Outra coisa: nunca pensei sentir tão intenso o chamado da terra. Sempre me considerei urbano, com grande necessidade de tecnologia, luzes, sons. Não sei descrever exatamente o que eu senti, não foi uma sensação que eu reconhecesse, mas estar em meio ao campo, longe de tudo, foi certo sentimento de liberdade. Ou autoconhecimento.

Assim que for um tanto mais dono de meu futuro, quero investir mais neste tipo de experiência.
Acho que falta aventura nas vidas de todos... A gente não quer só comida...

terça-feira, 7 de março de 2006

Degradação

Sei que deve ser mal de todas as cidades grandes
Que deve ser natural em todos os lugares onde a segregação econômica se faz muito presente
Mas é difícil se acostumar com a miséria e os contrastes urbanos.
Crianças cheirando cola e pedindo esmolas nos sinais e nas portas dos supermercados
Um circo de horrores e de comércio barato na passarela para a rodoviária
Familias inteiras de mendigos abrigados em um viaduto
Uma senhora grisalha recolhendo restos da lixeiras
Outra banhando-se num chafariz imundo

Nessas horas - e talvez só nelas - dê uma saudade do interior, onde as diferenças são bem menores e as pessoas são bem mais humanas.