segunda-feira, 17 de março de 2008

Triangulo das Aguas II

"Eu estava ali parado na porta aberta do quarto vazio, cheio de rachaduras nas paredes, piso riscado, vidros nus, já a me curvar em direção ao assoalho para tentar lembrar quando de repente tive certeza de que esse outro me abandonara no que eu poderia chamar de: a metade de minha vida. Portanto a idade que tenho agora, ou que tinha naquele sábado, deveria ser exatamente o dobro da idade contada a partir daquela perda. E de alguma forma, por ser justamente naquele sábado de chuva, em novembro, na tarde, essa perda - ou partida, ou ausência, ou separação, como queiram chamá-la - atingia seu justo dobro. Alguma coisa tinha sido inteiramente paga, como um ciclo se fecha, um transito ou uma lunação acabam, dando origem a outra que será completa até o seu reinício. Eu poderia pensar que a partir de então conseguiria entrar naquele quarto, vedar as rachaduras na paredes, pintar meticulosamente os vidros, enchê-los de trapos e papéis e palhas e cascas e flores secas, como as outras peças da casa, acabando com o seu deserto. Me ocorre, esta é outra coisa que poderia dizer de mim mesmo, se quisesse ser preciso - além de cinza e longo -, tenho um quarto vazio por dentro. Pensando nisso, poderia quem sabe me sentir mais inteiro, como se à medida que fosse me apropriando de cada peça da casa, uma por uma, como quem finca uma bandeira em território novo, me tornasse também dono de novos territórios de mim mesmo.Mas não sei se saberia o que fazer com essa inteireza, possivelmente não me sentiria mais feliz com isso. Então para quê?"

fragmento de "O marinheiro" - triangulo das águas - Caio fernando Abreu

3 comentários:

Unknown disse...

Tô lendo esse livro!

Dark Side disse...

Caio é sempre complicado, pode ser amor ou ódio. Espero que goste!

Mom Quaresma disse...

Olá Rodrigo!
Parabéns pelo blog,amo tudo o que Caio F. escreve,se puder me adicionar no msn ou mandar um email vou ficar feliz,pois,também escrevo umas coisas de vez em quando:momquaresma26@hotmail.com